Alimentos biofortificados usando biotecnologia

Por Décio Luiz Gazzoni, engenheiro Agrônomo formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Conselheiro do Conselho Científico Agro Sustentável – CCAS

Alimentos biofortificados usando biotecnologia
Foto: Acervo Embrapa

Cultivos transgênicos não constituem novidade, o mundo convive com eles há quase 30 anos. Primeiro foram os cultivos resistentes a herbicidas, em seguida resistentes a insetos. Ou seja, facilitavam a vida do agricultor. Porém, sem o mesmo alarde, inúmeros grupos de cientistas estão desenvolvendo plantas que produzem alimentos biofortificados, com mais vitaminas, sais minerais, aminoácidos ou lipídios específicos. É uma nova era se descortinando, que será muito potencializada com as novas ferramentas de biotecnologia, como a edição gênica. O benefício das novas tecnologias será dos cidadãos em geral.

 

Nessa linha de avanço tecnológico, a revista Nature publicou em 23/5/22 o artigo “Biofortified tomatoes provide a new route to vitamin D sufficiency” (nature.com/articles/s41477-022-01154-6). Pesquisadores do Reino Unido, Itália, Chile, Cuba e Brasil se uniram para desenvolver um tomate com maior teor de provitamina D, utilizando técnicas de edição genômica. Para tanto, os cientistas modificaram uma seção duplicada da biossíntese de fitoesterol presente no tomateiro. Uma vez dominado o processo, outras plantas da mesma família Solanaceae (berinjela, batata, pimenta) poderão ser biofortificadas.

 

Deficiência de vitamina D

A justificativa dos autores para investirem nessa linha de pesquisa foi a constatação de que o baixo nível de vitamina D no organismo é um problema de saúde global. De acordo com esses cientistas, a insuficiência ocasiona maior risco de câncer, declínio neurocognitivo, problemas no desenvolvimento do esqueleto e mortalidade por diversas causas. Uma extensa revisão bibliográfica efetuada pelos autores do artigo mostrou que as deficiências de vitamina D afetam a função imunológica, a ocorrência de inflamações e estão associadas ao aumento do risco de deficiências de micronutrientes, doença de Parkinson, depressão, demência e gravidade da infecção pelo SarsCov 2.

Aproximadamente um bilhão de pessoas no mundo sofrem de insuficiência de vitamina D. A maioria dos alimentos de origem vegetal contém baixos níveis de vitamina D. Por ser lipossolúvel, pode ser encontrada em teores mais elevados em carnes, peixes e frutos do mar, ovos, leite, fígado, queijos e cogumelos, que possuem alto teor de óleo. Por esse motivo, os pesquisadores julgaram conveniente desenvolver plantas com teor elevado de provitamina D, para constituir-se em uma opção para o público em geral, em especial para pessoas que possuem qualquer restrição de ingestão de alimentos de origem animal.

 

A técnica usada

A substância 7-dehidrocolesterol (7-DHC) é sintetizada por algumas plantas, como o tomateiro, na rota para a síntese de colesterol e esteroides glicoalcaloides (SGA), predominantemente nas folhas. A exposição das folhas do tomateiro aos raios ultravioletas (UVB) é que produz a vitamina D3.

Embora o 7-DHC tenha sido identificado em folhas de tomateiro, normalmente não se acumula nos frutos, onde atua como intermediário na formação de SGAs: tomatinas em frutos verdes e esculeosídeos em frutos maduros. Estudos recentes haviam demonstrado que uma via duplicada opera em espécies de solanáceas, incluindo o tomate, onde isoformas específicas de algumas enzimas, responsáveis pela biossíntese de fitoesterois e brassinosteróides, produzem colesterol para a formação de SGAs. Essa separação parcial da biossíntese de fitoesterol e colesterol permite flexibilidade metabólica para a síntese de hormônios importantes (brassinosteroides) e produtos químicos mais especializados, como os SGAs, com propriedades fungicidas, antimicrobianas e inseticidas.

 

Segundo os autores do estudo, a existência de uma via duplicada para a biossíntese de SGA em tomate torna a engenharia do acúmulo de 7-DHC relativamente simples. Uma isoforma específica da enzima 7-desidrocolesterol redutase (Sl7-DR2) converte o 7-DHC em colesterol para a síntese de α-tomatina em folhas e frutos. Logo, se for impedida a atividade da Sl7-DR2, em teoria deveria resultar no acúmulo de 7-DHC, com impacto mínimo na biossíntese de fitoesterois e brassinosteróides.

 

Com base na teoria acima, os pesquisadores bloquearam a atividade da enzima Sl7-DR2 no tomateiro, usando uma técnica moderna de edição de genoma (CRISPR–Cas9), objetivando aumentar os níveis de 7-DHC. As plantas modificadas foram analisadas, verificando-se que a ausência de atividade da enzima resultou em aumento substancial do teor de 7-DHC nas folhas e tomates imaturos, com teores inferiores nos frutos maduros, mas, ainda assim, muito superiores ao tomate convencional. Os autores referem que a exposição dos frutos maduros à radiação UVB, por uma hora, permitiu obter em um fruto de tomate, teores de vitamina D3 equivalentes àqueles encontrados em um ovo ou em 28g de atum, que são fontes recomendadas de vitamina D, representando 20% da ingestão diária recomendada.

 

Os resultados com frutos maduros são considerados promissores, por ser o primeiro estudo do gênero. Porém, o mais entusiasmante foi a concentração de vitamina D3 nas folhas. Enquanto frutos maduros apresentaram teores de 0,3mg/kg de matéria seca, nas folhas o teor foi de 200mg/kg. Esses resultados indicam dois caminhos interessantes: a possibilidade de aumentar os teores nos frutos, e a alternativa de uso das folhas de solanáceas como fonte de vitamina D. Além disso, a replicação do estudo com outras plantas da mesma família (berinjela, batata ou pimenta) poderá conduzir a resultados ainda melhores.

 

Não é apenas a vitamina D

Existem diversos exemplos de uso da biotecnologia para fortificação de alimentos. Comentamos alguns deles a seguir:

 

Ferro: O gene da ferritina de soja foi expresso em arroz, com aumento de até 200% no teor de ferro nos grãos (http://bitly.ws/rEJP). A ferritina foi escolhida pois, no intestino humano, não é indisponibilizada durante a digestão por inibidores da absorção de ferro, como os fitatos. Além do arroz, os genes da ferritina e da lactoferrina humana aumentam o teor de Fe em milho (http://bitly.ws/rEKi), tomate, batata e alface (http://bitly.ws/rEJP). A expressão de ferritina de soja, em plantas de trigo, levou a um aumento de 1,5 a 1,9 vezes no seu teor de ferro (http://bitly.ws/rEKA). O gene da ferritina coexpresso com o gene da nicotianamina sintase (NAS) no arroz produziu um aumento de 6-7 vezes no teor de Fe (http://bitly.ws/rEKU). 

 

Zinco: A superexpressão é uma técnica utilizada para aumentar o teor de uma proteína, ou outra substância, valendo-se de cópias extras do mesmo gene. Pesquisadores promoveram a superexpressão do gene HvNAS1 (obtido da cevada) em plantas de tabaco, aumentando substancialmente a concentração de zinco, ferro e cobre em suas sementes (http://bitly.ws/rENr). A planta de tabaco é usada como modelo conceitual, se for bem sucedida, a técnica é utilizada em plantas que produzem alimentos. Em outro estudo semelhante, a superexpressão de HvNAS1 no arroz levou a um aumento de 1,5 e 2,5 vezes nas concentrações de zinco e ferro em grãos de arroz polidos (http://bitly.ws/rEND). Um alto nível de Zn e Fe foi alcançado pela expressão em grãos de trigo dos genes OsNAS2 (do arroz) e Pv Ferritina (do feijão) (http://bitly.ws/rEPe).

 

O ácido fítico forma complexos insolúveis no trato gastrointestinal quando combinado com íons metálicos, especialmente Zn e Fe, que podem não ser digeridos ou absorvidos. Uma estratégia para aumentar a biodisponibilidade de Fe e Zn é diminuir o teor de ácido fítico nos alimentos. Isto pode ser obtido com o aumento da atividade da enzima fitase, que libera os íons de Zn e Fe no organismo. As linhagens transgênicas de trigo, contendo o gene phyA (obtido de Aspergillus japonicus), apresentaram aumento do teor de fitase, levando a um um incremento de 4 a 115% no ferro e zinco biodisponível (http://bitly.ws/rEQW).

 

Iodo: Pesquisadores introduziram e superexpressaram o gene transportador de iodeto de sódio humano (hNIS) na planta modelo Arabidopsis thaliana, observando maior captação de iodo. Além disso, o gene HOL-1 que codifica para a enzima HMT (que causa volatilização de iodo) foi eliminado, gerando uma redução substancial na volatilização de iodo em plantas transgênicas, em comparação com as convencionais (nature.com/articles/srep00338). A técnica será agora usada em plantas que produzem alimentos.

 

Vitamina A: o β-caroteno, precursor da vitamina A, não se acumula no endosperma do arroz; no entanto, o precursor de β-caroteno, geranilgeranil pirofosfato (GGPP), está presente. Cientistas obtiveram linhagens de arroz com caroteno por meio da introdução do gene da fitoeno sintase, obtido de narcisos (http://bitly.ws/rESx). Em outro estudo, houve incremento no acúmulo de β-caroteno no endosperma do arroz pela introdução de três novos genes: o gene Erwinia uredovera phytoene dessaturase (crtI), o gene daffodil fitoene sintase (psy1) e o gene licopeno β-ciclase (lcy) obtidos de plantas de narciso (http://bitly.ws/rESK). Em outro estudo (nature.com/articles/nbt1082), um aumento de 23 vezes no nível de β-caroteno foi observado pela introdução, no genoma do arroz, do gene psy1 do milho junto com o gene crtI, quando comparado com o arroz dourado, anteriormente desenvolvido por Ingo Potrykus e Peter Beyer. (https://www.goldenrice.org/).

 

O milho é uma importante cultura alimentar; no entanto, o teor de β-caroteno em seus grãos é baixo. Vários relatos de milho transgênico com perfis de β-caroteno incrementados foram publicados. Um estudo relata um aumento de 34 vezes no nível de β-caroteno pela superexpressão dos genes crtI (fitoeno dessaturase) e crtB (fitoeno sintase) (http://bitly.ws/rETp). Em outro estudo, o milho foi geneticamente modificado visando, simultaneamente, três diferentes vias de biossíntese (β-caroteno, folato e ascorbato). As plantas transgênicas continham 169 vezes mais β-caroteno, 6 vezes mais ascorbato e o dobro da quantidade de folato em comparação com as convencionais. Este milho geneticamente modificado pode desempenhar um papel crucial na prevenção de deficiências de múltiplos micronutrientes (http://bitly.ws/rEU8).

 

Muitas abordagens transgênicas têm sido relatadas para o aumento do conteúdo de β-caroteno no endosperma do trigo. Um estudo obteve níveis de β-caroteno 10,8 vezes maiores em comparação com as variedades convencionais, pela introdução dos genes PSY1 e CrtI de milho (http://bitly.ws/rEUI). Outro estudo permitiu obter um aumento de 8 vezes no nível de β-caroteno pela coexpressão dos genes CrtB e CrtI, introduzidos no trigo (http://bitly.ws/rEV3).

 

Apesar de a batata ser uma fonte de energia significativa, contém uma quantidade diminuta de carotenoides, sendo os principais violaxantina, xantofilas e luteína, que não possuem atividades de β-caroteno. Foram relatados aumentos nos teores de carotenoides, de até 19 vezes, na batata transgênica expressando o gene crtB introduzido de Erwinia uredovora, que codifica para a enzima fitoeno sintase (http://bitly.ws/rEVj). Outro relato indicou um aumento de 14 vezes no conteúdo de β-caroteno por nocaute do gene ε-ciclase de licopeno (ε-LCY) (http://bitly.ws/rEVI). O conteúdo de β-caroteno aumentou ao se eliminar o gene da β-caroteno hidroxilase (CHY), que converte o β-caroteno em zeaxantina. O tubérculo transgênico apresentou um nível reduzido de zeaxantina, em decorrência aumentando em 38 vezes o seu nível de β-caroteno (http://bitly.ws/rEVT).

 

Vitamina B: Tomates transgênicos, com maior expressão específica da GTP ciclo-hidrolase I, demonstraram ter maior teor de vitamina B9 (http://bitly.ws/rEWq). Arroz transgênico aprimorado para vitamina B9 através da expressão de genes Glb-1 e GluB1, da via biossintética do folato (vitamina B9) mostraram um aumento de até 100 vezes no teor de vitamina B (http://bitly.ws/rEWC).

 

Vitamina C: O gene GDP-l-galactose fosforilase (GGP ou VTC2) foi usado para aumentar o teor de ácido ascórbico (vitamina C) em tomate, morango e batata. Plantas transgênicas de tomate mostraram um aumento de 3-6 vezes, enquanto linhagens transgênicas de morango mostraram um aumento de 2 vezes. Nas plantas de batata transformadas houve aumento de 3 vezes no teor de vitamina C (http://bitly.ws/rF4F). Outra pesquisa desenvolveu milho biofortificado com vitamina C, vitamina A e vitamina B9. Para aumentar o teor de vitamina C, foi introduzido no milho o gene que codifica para a desidroascorbato redutase (dhar), com um aumento de até 6 vezes no teor de ascorbato (http://bitly.ws/rEU8).

 

Vitamina E: O teor de vitamina E aumentou no tabaco e no milho com a superexpressão dos genes HGGT e HPT na via do tococromanol, aumentando seu teor em até 5 vezes em folhas de tabaco e 7 a 18 vezes em grãos de milho (http://bitly.ws/rEXw).

 

Em conclusão, um novo futuro se descortina. Paralelamente às novas oportunidades para os produtores agrícolas teremos a oferta de inúmeros alimentos biofortificados, com elevados teores de nutrientes essenciais e redutores de riscos de enfermidades e distúrbios, propiciando melhor qualidade de vida para todos. Lembrando que esse futuro promissor está sendo possível pelo avanço tecnológico, em particular pelas ferramentas da biotecnologia, o que reforça a importância de investir fortemente em Ciência e Tecnologia para benefício de todos os cidadãos.